Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Quando o Nelson era vivo, era fácil. O primeiro pedaço era sempre para ele. E ele fingia surpresa. E ria o sorriso mais lindo que havia no mundo. E me beijava com os lábios lambuzados de bolo. E eu gostava.
O Nelson se foi. E deixou um buraco em mim. Os meus filhos diziam que eu era uma viúva inteira, que logo estaria ocupada com outro amor. Acho até que diziam para ver minha reação. São muito ciumentos os meninos. Mas eu não quis outra experiência. Não. Preferi viver os filhos e os netos. Gosto até de dançar, de vez em quando, mas nada de começar tudo de novo. Dá muito trabalho, penso eu.
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O fato é que, toda vez que faço aniversário, é esta cobrança: quem vai ganhar o primeiro pedaço do bolo? Para filho, não posso dar. São três. Para as noras, também não. Os netos são sete. Uma amiga deixaria a outra enciumada. Que difícil. Já pensei em dar para a pessoa mais velha ou para a mais jovem, para ter um critério. Já pensei em cortar vários pedaços ao mesmo tempo.
Sou eu mesma quem faz o bolo. Da família toda. Eu gosto da cozinha. Não me importo de alimentar muita gente. Vez ou outra, eles querem comprar em alguma doceria. Eu não deixo. Se quiserem comer na minha casa, vão comer do meu bolo.
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Sabe que sempre fui boa em decidir? O Nelson deixava tudo nas minhas mãos. A comida. A roupa que melhor lhe cabia. O dinheiro. As contas que deveriam ser pagas. A última palavra do pedido de um filho. É claro que conversávamos, mas ele me olhava com tamanha docilidade e só queria que eu me sentisse dona da situação. E era visível que ele gostava disso. "Sua mãe resolve", "É ela que sabe", "Meu amor, o que você decidir está bom".
Não sou de ficar choramingando pelos cantos. O passado foi lindo, mas passou. O tempo já escorregou de meus desejos muitas vezes. E eu não pude segurar. O Nelson tinha o costume de caminhar comigo segurando no meu braço. Eu gostava. Era como se eu fosse o seu suporte. Nos últimos dias, seu caminhar era vagaroso. Ele pressentia que o último caminhar se aproximava. Mas não reclamava. Apenas olhava agradecido por ter tanto amor por perto.
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Não poucas vezes, consolava amigos em luto lembrando que a morte é uma certeza indiscutível. Sobre o que viria depois, ele pouco falava, apenas confiava. Meu marido sempre foi um homem de muita fé.
Lá estou eu no passado novamente. Mas como não manusear as fotos mais lindas da minha vida? Estão em mim. Inteiras. Ontem mesmo, fiquei deitada em uma almofada que ele me deu com um escrito de amor. Gostaria de estar deitada no colo dele, como tantas vezes.
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E o bolo? Ofereço a quem o primeiro pedaço? Não gosto de rasurar afetos. Sempre cuidei para que os três filhos se sentissem amados. Exatamente isso, não basta aos pais que amem os seus filhos, é preciso que eles sintam esse amor, senão correrão o risco de mendigar amor pela vida. Em casa, nos meus erros e acertos, amor nunca faltou.
Talvez dê o primeiro pedaço para a Carminha que perdeu o marido há pouco. Exatamente. Um pedaço de ternura para aquecer a falta que ele vai fazer. Nos inícios, é muito difícil. Depois também. Mas a gente se acostuma e prossegue. Consolei Carminha como pude. Do meu jeito. De falar pouco e abraçar o necessário. Era de presença que ela precisava. Disse que ainda não estava em clima de festa, mas que viria ao meu aniversário, que iria fazer bem. As outras vão entender.
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Vou usar um vestido azul que o Nelson me deu. Ainda lembro suas palavras na loja, ainda lembro seu olhar. E eu, timidamente, experimentando para ele decidir. "Você é a mulher mais linda do mundo, qualquer vestido fica bom". Na época, ralhei com ele. E decidi que ele havia decidido. O azul.
O céu está lindo hoje. Como é bom viver. Se eu pudesse, começaria tudo de novo, mas, como disse, o tempo é arredio e não volta. Fazer o quê? 
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Gabriel Chalita é professor e escritor
 
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