Desisti.
A recebi na porta do Mercadão. Ela chegou emotiva. Camiseta de malha bem simplinha, milhares de colares coloridos, saia esvoaçante, botinha de camurça, óculos escuros, bolsa pra carregar um elefante e um chapéu maior ainda. Tava pronta pra gravar um programa do GNT. Nos cumprimentamos. Um transeunte centenário, um pouco embriagado, passou por nós e gritou pra minha amiga:
- Olha a loura do banheiro!
As pessoas riram.
Minha amiga não é loura.
Ela ignorou e me perguntou com voz de quem acabou de chegar à Disney e quer fazer selfie com a parteira do Mickey:
- Dedé, onde fica a parte gastronômica daqui?
Fui no inferno e voltei dezessete vezes, na última viagem cheguei com uma par de chifres fumegantes: ODEIO QUE ME CHAMEM DE DEDÉ.
- Fia, em nome de Jeová da Aruanda, me chame de fimose do dragão assassinado por São Jorginho na beira da lua, mas não me chame de Dedé. E gastronomia aqui? Temos! Chiquíssima: Joelho, Coxinha, Pastel, bolinho de aipim, empadão e caldo de cana pra rebater. Tem bode também, mas vendem vivo.
Respirei fundo, me imaginei cercado de luz azul e retomei a paz e o bom humor. Deumólila (não parece mas é nome fictício hahaha) não ligou. Estava firme em sua missão.
- Gostei disso de joelho, achei diferente. É joelho de porco? - Ia responder que era de unicórnio, mas estava ungido por Santa Acarupita da Bacia das almas e expliquei do que se tratava. - Ah, Italiano! Comia muito quando fazia UFF.
Quem chama joelho de Italiano mata três saguis da cara branca em algum lugar da mata atlântica. Ui.
Perguntei se ela queria começar a tour pela parte de macumba ou pela parte das bugigangas. Ela me olhou nos olhos e começou a tirar os sapatos:
- Meus pés dirão!
- Calça isso, pelo amor de Deus, tu vai pegar até cárie. Não abusa.
Não adiantou e ela foi andando em direção ao infinito e eu parado, em choque. O moço da papelaria se aproximou e perguntou:
- Ela é do Santo?
- Do Santos Dumont. - respondi.
Segui Deumólila e a encontrei experimentando roupas e pedindo dicas de como fazer um turbante pra usar em festas.
Uma moça engajada no movimento negro estava perto e respondeu: - Pede dica pra Sacha, ela é a mais nova preta do Brasil, tá sabendo não? O AUGE.
- E riu.
Deumólila agradeceu, achou místico. Comprou quatro batas pra ela e um pano colorido pra mim (que quando cheguei em casa minha mãe se apoderou e transformou em uma capa de almofada).
Continuamos a ronda e chegou o grande momento. Deumólila encontrou com o ícone máximo do lugar: O TRANCA RUA do Mercadão.
Gente!
Mas gente...
A mulher queria se ajoelhar e eu puxando a bicha pra cima. Queria bater cabeça no chão e eu puxando a bicha pro lado.
Sofrimento.
- Que bom que eu estou descalça diante do Senhor. Tranca sorria escancaradamente e olhava pro nada. Os
debochados foram se juntando ao redor. Deumólila seguiu na prece: - É uma honra estar diante do Rei das
Encruzilhadas!
UAU! As pessoas murmuravam seus larôs e seus salves. Eu? Estava bobíssimo. Ela deu uma dentro! Se eu soubesse deixava a bichinha ter se ajoelhado.
- Eu vim de longe pra lhe conhecer, Senhor dos caminhos e da malandragem. - Ela estava emocionada. O dofonitinho que trabalha na loja em frente tava quase bolando na Solange da Pia Suja das sete garrafadas.
Deumólila se abaixou pra fazer reverência e soltou: - HOJE TE DIGO OLHANDO EM SEUS OLHOS: SARAVÁ MEU PAI OXÓSSI!
As pessoas nem riam de tão urinadas que estavam. Só a balconista comentou:
- Da um doce pra ela, é hipoglicemia!
Tranca rua nada falou. Continuou rindo.
#artistasuburbanoreflexivo